2018-12-20 13:16:54.0
Pesquisa de pós-doutorado em Letras aborda aleatoriedade em regras de colocação pronominal no Brasil
Proibições e obrigação no uso de pronomes átonos no português brasileiro têm origem em classismo, imprensa e até inimizades, afirma pesquisador supervisionado por Carlos Alberto Faraco
No poema “Pronominais”, de 1925, Oswald de Andrade registrava que o brasileiro tinha duas formas de pedir um cigarro: os letrados dizem “dê-me um cigarro” e “o bom negro e o bom branco” falam “me dá um cigarro”. Em sua pesquisa de pós-doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR, o pesquisador Marcelo Dos Anjos dos Anjos endossa a constatação de que as regras de colocação pronominal do português brasileiro têm raízes no uso da linguagem como critério de diferenciação de classes. Mais: além da origem classista, a história da norma mostra que outros fatores, como questões políticas e até inimizades entre autores, ajudam a explicar o porquê de o país ter regras tão rígidas no posicionamento de pronomes oblíquos átonos (me, te, se, o, a, lhe, nos, vos e seus eventuais plurais) frente a verbos.
A pesquisa destaca o fato de, apesar da falta de consenso entre os teóricos sobre essas normas, que perdura até hoje, em geral a gramática brasileira mais disseminada traz obrigações quanto à colocação de pronomes, o que não ocorre na gramática portuguesa. “O tema não atormenta os portugueses como aos brasileiros. Em tese, até mesmo a proibição do pronome em início de oração só faz sentido para nós”, diz Dos Anjos.
Entre esses impeditivos está o uso do pronome antes do verbo (próclise) em início de frase, que inspirou Oswald de Andrade. Outro é a “atração” que certas palavras, como os advérbios ou as de sentido negativo, exerceriam sobre o pronome, o que forçaria a próclise (caso de “nunca te vi” ser o correto em relação a “nunca vi-te”).
Dos Anjos estudou a história das regras de colocação pronominal e concluiu que a maioria delas foi inventada e, depois de levantadas em discussões intelectuais, acabou imposta pelo ensino formal. As gramáticas do século XVIII, por exemplo, apenas citavam a existência da próclise e da ênclise. Foi nos séculos XIX e XX, com a disseminação da imprensa, que as discussões ficaram mais acaloradas e, as definições, mais totalitárias. “É tudo muito impressionístico”, avalia o pesquisador, considerando que há mais opinião do que fatos nas normas que foram surgindo.
Atração
Uma amostra disso é a lógica do fator atrativo de certas palavras, cuja presença na frase define a próclise. A crença de que existem palavras e expressões que atraem pronomes estava implícita nas gramáticas do século XIX, mas João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes, em 1889, foi o primeiro a abordar isso expressamente. Para o filólogo brasileiro, havia “uma certa attracção do sujeito ou do advérbio de negação, quantidade e tempo, para com o pronome obliquo”. Nota-se que a “sensação” foi de mais valia na regra de Ribeiro do que aspectos linguísticos.
A discussão rendeu frutos e, ao longo do processo da lógica atrativa, ocorreu um crescimento exponencial na quantidade de “palavras atrativas”. Na década de 1870, Feliciano de Castilho Assim afirma que as palavras atrativas de pronome são os advérbios -- 12 mais todos os terminados em “mente”. Em 1880, Arthur Barreiros falava de 31 palavras, de várias classes gramaticais, que devem ser antepostas ao pronome. No mesmo ano, Pinheiro Júnior enumera 53 vocábulos que obrigam a próclise. Hoje a regra cobrada em provas escolares abrange uma centena de palavras, já que incluem advérbios, pronomes indefinidos (como “tudo” ou “nada”), pronomes interrogativos, pronomes relativos, pronomes demonstrativos e conjunções subordinativas.
“Isso definiu a ‘tirania da próclise’ no Brasil: listas e listas de vocábulos atratores que devem ser decorados pelos estudantes sem muita contestação”, analisa Dos Anjos.
Em sua pesquisa, o professor registra também o uso político da discussão sobre gramática na figura da “batalha” travada entre Castilho (aliado do imperador Dom Pedro II) e o político e escritor José de Alencar em fascículos publicados na imprensa em 1871 e 1872. Sob o pseudônimo “Cincinato”, Feliciano fez uma análise impiedosa da obra “O Gaúcho”, de Alencar. “Não escapava nada: a obra, o estilo, a linguagem. Tudo era um meio para criticar o político. O intuito era mesmo o de ridicularizar Alencar e a matéria linguística caia como uma luva para esses propósitos”, conta Dos Anjos.
Vira-latismo
É inegável, também, que a necessidade de condenar o uso brasileiro dos pronomes oblíquos tenha guiado boa parte dessas regras. Na fala coloquial, até hoje é mais comum um brasileiro errar a colocação pronominal do que acertar, mas as regras continuam firmes e fortes. Teóricos já chamaram a forma como o brasileiro usa pronomes oblíquos de “anomalias”, “brasileirismos a serem evitados”, ou “viciosa colocação de pronomes que muita gente usa no Brasil”. “De lá para cá, ainda somos acusados de não sabermos colocar os pronomes”, resume Dos Anjos.
Teóricos como Arthur Barreiras, Feliciano de Castilho e Gama e Castro criticaram abertamente os usos brasileiros. O marco, porém, foi Cândido de Figueiredo, que escreveu especificamente sobre a colocação pronominal e, no início do século XX, decretou o banimento da forma brasileira de falar, que classificou como um amontoado de “erros crassos” frente ao “legítimo” português de Portugal. Uma das respostas mais contundentes a Figueiredo foi a de Paulino de Brito, na obra “Brasileirismos”, de 1908. “A verdade é que brasileiros e portuguezes collocam os pronomes da mesma fórma, salvo pequenas variântes”, ponderou.
Para Dos Anjos, o fato de Figueiredo ser hoje considerado por muitos um símbolo do preconceito linguístico não significa que sua influência seja nula. “Acreditamos que a voz do filólogo português ecoa ainda hoje em muitos materiais, sobretudo aqueles de qualidade bem duvidosa”.
Super-correção
O professor Carlos Alberto Faraco, que supervisionou a pesquisa de Dos Anjos, acredita que entender a história das regras gramaticais é um caminho para um ensino mais crítico da Língua Portuguesa, especialmente no caso das colocações pronominais. “A vantagem de um trabalho como este é compreender que essas regras, primeiro, não caíram do céu; depois, não resultaram de sistematização, além de serem muitas vezes aleatórias e tiradas do entendimento de que o povo ‘destroi’ a língua”, afirma. “Também são autoritárias, porque querem coagir pessoas que ‘falam errado’”.
Faraco lembra que as regras gramaticais que subordinam uma língua costumam gerar um efeito adverso, o excesso de correção. “Você lê tanto sobre isso e aquilo ser errado, que incorpora”, explica. Assim, diz o linguista, surgem construções que não têm amparo nem na regra nem no coloquialismo. É o que ocorre quando, em vez de optar pelo coloquial “vi ele na rua” ou pelo culto “vi-o na rua”, o escritor escolhe “o vi na rua”. “É um registro que só existe por causa da mega-hiper-correção”.
Contato para esta matéria:
Camille Bropp Telefone: (41) 33605158
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